Dentro do quarto, dilermando ainda abotoava o dólma quando recebeu o primeiro disparo na virilha: "que é isso, doutor?"
E euclides, dedo no gatilho, repetia: "bandido", "desgraçado", "mato-os"
Sim, pois pretendia eliminar dona saninha também
Cerebral e adestrado para situaçoes de risco, dilermando deu um passo na direçao de doutor euclides
Queria desarmá-lo
Nao trazia arma nas maos
Foi quando levou um segundo tiro no peito
Recuou para dentro do quarto e, enquanto dinorah fugia dando as costas a euclides, dilermando colheu na prateleira seu smith and wesson
Ao ver o escritor atirar pelas costas em seu mano, dilermando fez o primeiro disparo
Em 15 de agosto de 1909, euclides da cunha invadiu a casa do bairro carioca da piedade onde morava o jovem tenente dilermando de assis, amante de dona saninha, mulher do escritor, disposto a matá-lo
Poucos minutos depois, no entanto, foi o autor de os sertoes quem perdeu a vida, atingido por três balas do revólver do militar
Este livro relata os meses que antecederam a tragédia e mostra que, ignorando fatos, a imprensa da época transformou dilermando em vilao, rótulo que o perseguiu até a sua morte
A maioria dos jornalistas e escritores que acompanhou o ocorrido concordava com a ideia de que euclides estava no seu direito, quando decidiu tirar a vida do seu rival
Essa opiniao encontrou respaldo na opiniao pública, que crucificou dilermando, mesmo depois de ele ter sido considerado inocente pelos tribunais
Poucos seriam aqueles que, nao levando em conta a versao cristalizada do ocorrido, levantariam dúvidas sobre a versao dos fatos
"a mim a tragédia euclides-dilermando me abalou profundamente
Sobre ela meditei muito tempo, dominado pela incerteza
Mas quando conheci todos os detalhes do processo, só entao vi, senti em tudo a mao glacial e inexorável da fatalidade - a mesma que levou aos seus crimes o inocente orestes
E uma coisa até hoje me pergunto: haverá uma só criatura normal das que olham dilermando com horror, que dentro do quadro daquelas circunstancias, nao fizesse a mesmíssima coisa?", questionava-se em 1916 o escritor monteiro lobato
Em matar para nao morrer, a historiadora mary del priore examina o triângulo amoroso entre euclides, dona saninha e dilermando, mas nao fica restrita a ele, analisando também seu pano de fundo histórico
Valendo-se de uma vasta pesquisa, a autora revela que euclides nao agiu como exceçao, quando achou que era a hora de matar ou morrer, repetindo os passos de milhares de outros homens que, estimulados pela sociedade, pegaram em armas para tentar limpar seus nomes
Um retrato, pintado com sangue, de um duelo sem vencedores, só vítimas
O resultado surpreendente prova que, em nome de valores civilizados, como justiça e honra, justifica-se o injustificável.